E não é que eu não ame festas ou o conceito de família
Mas é que ter vivido toda uma vida em isolamento
E depois ter sido abusada por um menino idiota
E me sentir solitária...
É que quando éramos pequenos, e ela o agredia
Eu me sentia culpada
Como tivesse causado tudo aquilo
Mas não era minha culpa, e eu não sabia
É que abrir o supercílio dele, com todo o peso da minha existência
E mais um ferro, em velocidade
E vê-lo sangrando no meu sofá branco da sala de estar, no meu sofá preferido
É que rachar a testa e o crânio, e a inocência dele daquela forma
Enquanto ela rachava a paz daquele menino aos gritos e à histeria
Como me fazia a irmã, a genética intacta da loucura
A herança que nós dois recebemos, como um presente mórbido de Deus
Mas quando eu não percebi meus olhos se fecharam
O sol me queimou por dentro e a luz me drogou por fora
Os raios eram tão intensos que eu emanava como um espelho da experiência de uma praia de horas
E enquanto eu desmaiava sentada
Ele invertia papeis comigo, invertia o jogo
Roubava a minha história de mim
E eu não vi, pois estava de olhos fechados
É que quando eu servi os copos eu queria ser um presente de natal
A escolhida do Papai Noel
Mas Papai Noel tinha morrido há tempos
E nem no meu próprio pai eu acreditava mais
E quando eu soube que ele foi costurado depois de quase morrer no meu sofá, eu quis me machucar
Pois tinha o provocado um de meus maiores pavores
Acho que eu respondi errado pra ela, e sim, ela me culpou
Ela sempre me culpava, assim como a outra, que me absolvia
Eu gostava de quando ele tocava os dedos em mim
De quando me cutucava, me beliscava, me chutava, me varria e me puxava pra debaixo d'água
Gostava de como chamava meu nome e de como sempre queria minha companhia
E de como colocava a mão em lugares que não deveria pôr
Eu me sentia real
Me sentia alguém
Sentia que só ele notaria se eu não estivesse ali
Até que deixei de ser relevante
Então passei a ser mais um objeto
Algo a ser jogado no lixo, como tudo à volta dele
E percebi que nada na minha realidade fazia sentido
Eu nunca existi de fato
Eu era só um sopro, uma sombra
Um pó.
Mas na noite em que eu me senti triste
Eu acreditei que ele viria comigo
Então abri a boca
E a refeição que veio foi violência
E na noite em que tive que lutar para não ser apagada
Do livro da história dessa família
Eu deixei de existir
Deixei de respirar
Deixei de ser capaz de decidir
O que fazer com meu próprio corpo
E ele decidiu por mim
Porque afinal
Eu era um objeto
Que ele podia usar e descartar
E ele usou
E hoje eu não sei mais pra onde ir
Então o que é Natal?
Se eu não tenho pais
Se não tenho família
Se o que me resta é abandono e abuso
E tolerar vê-lo, suportá-lo
Fingindo que nada disso aconteceu?
Natal.
Não é que eu queira cometer este sacrilégio com amor e com a rabanada
Mas o amor
O açúcar
A canela
E Deus
Apenas desistiram de mim.
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