quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Gole

- Senhorita, aceita um gole para atordoar o silêncio?

- Apenas um, você sabe. O tanto que dura o prazer.

- Como quiser.

- E que tal um poema? Estou certa que tem um a me oferecer.

- Só depois dessa garrafa.

- E por quê? Por que precisa dela?

- Porque ela já faz parte de mim.

- E a elegeu como sua acompanhante?

- É uma companhia prazerosa.

- E se eu me propuser a ser sua nova companhia?

- Eu te convidaria.

- A ir aonde?

- Aos meus cantos obscuros. À minha melancolia.

- À sua poesia, eu adoraria.

- Está certa disso?

- Estou... Curiosa. Interessada, eu diria.

- Me explique, moça.

- Não sei dizer ao certo... Sua tristeza me agrada.

   A garrafa estava quase no fim. Fui obrigada a acender um cigarro. O silêncio desse instante preencheria o espaço de todas as respostas que eu não tinha sobre o futuro. Mas era mesmo incrível a minha capacidade de inventar futuros novos a cada semana.
   Ele deveria dizer algo, mas sua boca estava cheia de álcool. Sua voz pareceu perder a sintonia com a mente, por vários segundos foi como se ele não estivesse mais ali. Esvaziou a garrafa no copo inócuo, e tornou a deixá-lo vazio. No último gole surgiu o meu poema. A madrugada o pedia. E eu degustei cada palavra devidamente escolhida por ele.
   Teria perguntado a origem daquele sentimento, mas antes que eu percebesse ele já tinha ido. Havia uma despedida no final do poema, que eu notei um tanto tarde. Nada muito grave. Ele estaria ali na noite seguinte. Uma garrafa e um poema. Eu com o meu cigarro, interessada. E uma estranha e mútua inaceitação da morte.

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