segunda-feira, 24 de junho de 2024

Mandíbula

Tão faminta que devoro umas castanhas e nozes
Que encontrei sobre a mesa da copa
Meu maxilar ameaça parar
Meu corpo inteiro pede socorro
E eu me pergunto se perdi o encanto
Se é algo que a gente, assim, perde
Se tem como resgatar
É incrível como eu só me enxergo
Espelhada nos olhos de um outro
Eu não existo
Sem um par de olhos pra me vigiar
Acho que é isso
É disso que eu tenho medo
De deixar de existir
Como uma banana
Teimo com meu corpo
Bebo um pouco de leite, um gole d'água
Todos os dias eu tento me convencer a tomar banho
Sei que preciso
Mas hoje não vai rolar
Eu tenho medo de ser invisível
Estar e não estar
De ninguém mais me notar
Enxergando minha casca ou não
Me descascando
Eu tenho medo de continuar aqui
Mas não sentir mais nada
Ou de sentir uma dor dilacerante
Sobretudo de sentir que
Eu não sou real
E não compreendo como isso doi
Onde é que me fura
Que me esfaqueia
Que me dilacera por entre as tripas
Eu não sei por que ou como
Só que doi
E doi como se eu fosse morrer
Mas não morro
Fico
Sobrevivo
Porque morrer requer força
Requer existir
Requer ódio e desgosto
E sobretudo não sentir
Não querer sentir
Não querer existir
Não querer ser real
E eu quero
Eu quero estar aqui
Mas cada dia que eu gravo em minhas memórias
Vai escorrendo por entre meus dedos
Até que eu já não me lembre de quem fui há cinco minutos
Há cinco dias
Há cinco anos
É tudo igual
Uma areia fina escorrendo em uma ampulhetinha
Eu tento me agarrar com toda a força
Mastigo meus dentes
Destruo as castanhas e nozes
Amarro uma corda na cintura 
E outra na cadeira
Pra me levantar da cama
Coloco o som de vozes humanas bem alto
Pra me acordar
E um vento gelado soprando na minha face
Tudo que está ao meu alcance
Ou quase tudo
Pois me prometi não tentar encontrar 
Meus órgãos internos
Com uma faquinha meia-boca
Será que o fogo que me rasga
Iria me trazer de volta?
Eu me prometi que não ia tentar
Mas me pergunto
E se essa for a solução?
De todo o resto eu tento
Sigo tentando
E recitando pra mim mesma 
"Eu tentei. Tento. Estou tentando. Vou tentar amanhã."
Mas o som da minha voz também escorre
Pelos corredores do prédio
Sobe e incomoda
Eu nunca tive o direito de existir
Então o que me resta?
Eu torço meu maxilar tentando manter-me viva
Contra as minhas próprias expectativas 
Porque são as únicas que ouço
A essa altura
Estou distante demais pra tornar-me viva
Pra qualquer coisa além de performar uma existência
Que nunca aconteceu
Preciso fechar meus olhos
O dia que não vai chegar não vem se eu não fechar
E quem disse que eu quero ver o dia de amanhã?
Eu quero que vá tudo pro espaço
Eu quero ser feliz
Mas não posso admitir
Isso iria me destruir por completo
Eu não posso querer o que quero
Falar
Sentir 
Ou 
Respirar
Então eu não existo

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