terça-feira, 9 de outubro de 2012

Talita

    Era um dia de decadência, como qualquer outro daquele ano insuportável. Ela acordou às 5 da manhã. Tinha dormido apenas uma hora. Em algumas noites não chegava nem a dormir. Sua mente ultrapassava o que podia ser dito como turbulento. Lembrou-se da época do colégio. Costumava acordar nesse mesmo horário, por vezes tendo dormido durante o mesmo tempo. Sentiu-se estrangulada por lembranças internas que só ele conhecia. A essa hora ele ainda estaria acordado? Talvez adormecido em sua poltrona com um caderno no colo. 

     Seria estranho pensar nele assim quando o conheceu, mas a imagem que tinha agora era marcada pelo forte aroma de cigarros. Era irônico pensar quantas vezes ele tinha insistido para que ela abandonasse aquele vício, enquanto que o efeito foi exatamente oposto. Era como se fosse o cheiro dela, impregnado nele. Seus pulmões eram semelhantes, assim como a melancolia, que nele, ela modelara caprichosamente. Ela refletiu um pouco, e não podia negar que tamanha ironia era divertida, uma espécie de degustação prazerosa da tragédia.

     Após algumas sessões de respiração lenta e profunda, ela reuniu forças, se alimentando apenas da necessidade doentia de observá-lo. Levantou-se da cama desconfortavelmente fria, e foi vê-lo. Ele estava a um cômodo de distância, mas ela sentia como se estivesse a uma distância muitas vezes maior. Como tinha imaginado, ele repousava, de corpo e mente exaustos, na poltrona também desconfortável. Ela se deu ao trabalho de escrever um bilhete. Um bilhete bem curto para uma despedida. Ali, disse que o amava, pediu perdão pelo egoísmo, e desejou-lhe sorte ao tentar destruir nele mesmo, o que nela nunca tivera conserto. Então, disse que a vida dele, a partir dali, recomeçaria, e que ele reencontraria o caminho para a felicidade. Finalizou dizendo onde ela estaria, e pedindo-lhe que não fosse procurá-la. Dobrou o papel de modo que ele pudesse ser preso na caneta dele, e lhe deu um beijo longo, porém sutil, antes de partir.

     Saiu. Foi levada instintivamente à rua onde tinha passado tanto tempo desejando o inalcansável e admirando o vazio. Um rio não muito profundo, e não muito limpo também, podia ser visto a uma altura considerável da ponte onde ela se debruçou, a ouvir seu coração acelerado, como se estivesse empolgado com a ideia de parar. Coragem. Ela subiu na grade de proteção. Abriu os braços, com todo o tom de drama cinematográfico. Não fechou os olhos. Caiu. Então respirou pela última vez. Adeus, Talita.


Escrito originalmente no blog MentesSingulares por mim.