segunda-feira, 27 de março de 2023

Interplanetário

Navego no pó empoeirado do meu passado
Não sei se envelheço
Ou se meu corpo está injuriado
Pelo pó branco que consumo em demasiado
Não que o tenha escolhido
Minhas unhas desniveladas e
A tinta desgastada nos meios
Expiam o meu estado
Que meus cabelos talvez não revelem
E tenho tentado, tentado dizer
Mas não há ouvidos que o possam
Que me caibam
Que me conheçam tradução
Ao idioma
Escorrego em meados de uma sombra
Amordaçada e solidificada
Acorrentada a mil cadeados
Para nunca cometer acesso
Mas me empurram diante desde abismo
E me seguro nos galhos
De uma árvore firme que plantei há muito
Na beira deste abismo
Com raízes bem firmes, fincadas a fundo na terra
Uma árvore antiga e forte
Que me segura,
Porém ainda dependo de meus braços
Para manter-me nela
Ainda posso cair
Não creio que sou capaz de escalar 
Para fora do fundo deste poço
Mais uma vez
E mesmo que o pudesse
Não sei se quero
Não sei se o quereria
Acho que eu cairia para todo o sempre
Então eu me seguro com todas as forças
E observo as sombras dançarem na luz
Como fosse a aurora boreal 
Uma paisagem milagrosa 
Desato-me de mim
Deixo que meu eu dance entre as sombras
E o observo, como não o soubesse
Como nunca o tivesse antes conhecido
E se ele escapa e cai no poço
Eu deixo ele lá
E tranco a mil cadeados
Faço um novo do zero
Quem notaria a diferença?

quinta-feira, 23 de março de 2023

Temperança

A pressão de
Ter que criar
Boas memórias
Me rouba o sono
Me assalta quando me deito
Como um crime
Que se comete em silêncio
Na solidão do breu
Me pego triturando
Como inventando temperos
Trançando um fio comprido
De pensamentos
Sobre meus dias infinitos
Meus dias respectivos
E sua respectiva repetitividade 
Como um salão de espelhos macabro
Onde tudo está tão distorcido
Que você não se lembra mais
Qual daquelas imagens é você
O você de verdade
Ou qual daqueles caminhos
Pode levar à saída 
Se há uma possível saída, ainda
Eu às vezes me esqueço
Que um dia eu tive que entrar
Nesse salão de espelhos
E que pra entrar eu tive que ter 
Um corpo original
Já me multipliquei
Não sei mais o que é real
Quando me deito, o peso é tanto
O cansaço é tanto
De tantos anos, de tantas
Que todas elas se debruçam sobre mim
E me suplicam que eu me debruce
Sobre mim mesma
Que eu ceda ao sono,
Que eu aceite essa derrota
Que eu finalmente descanse
Dessa exaustiva existência
Porque é demais para todas nós
Mas quando penso sobre o sol nascente
Sobre o peso dos raios quentes
Nos meus ombros tortos
Sobre a dor na minha coluna
E sobre passos forçados em direção à forca
Em direção nenhuma
Em direção a uma estação 
cujo trem não vai me levar a lugar algum
— ou a algum lugar que ninguém compreenderia
— ou ao mesmo lugar de sempre, pra sempre
Quando minha nuca enrijecida
Se deita sobre estes pensamentos
E as aves gralham seu recital das cinco ou seis
Por mais que meus olhos pesem,
Eu sei que caso eu não crie essa memória sozinha
Caso eu não passe ao menos 
uma ou duas horas vazias 
Comigo mesma
Fingindo que há esperança
Rogando paz
Respirando o nada
Caso eu não me recorde
Que existiu um tempo
Além do resto da vida
Em que eu tive a chance de ficar só,
E respirar no escuro 
Não haverá esperança
Não haverá esperança

Eu não vou sobreviver.

sexta-feira, 17 de março de 2023

Frequência

Minha mente passa tanto tempo
aos berros 
que há muito eu havia esquecido
que vivo em constante silêncio
Estou quase sempre nua
porque me incomoda essa indespível
segunda pele 
que me tapa as genitais e que
me abafa por dentro
E quase não percebo
Queria pintar minhas unhas de rosa
e cortá-las curtas
Mas não tenho forças, ou acetona
não tenho o esmalte neon necessário 
E mesmo que o tivesse
Eu desenho pinturas 
que nunca vão chegar no papel
escrevo textos nas gotas de vapor do chuveiro
Na efemeridade de mim
De só existir dentro de mim
E sei que tudo que eu fizer será em vão
mas nem mesmo tento
Não tenho vida para tanto
Tenho passado toda uma vida a conversar com os espíritos
A conversar com as paredes
A conversar com o vento
E enfim percebo que tenho passado
Toda uma vida calada
Sem que ninguém me ouça
Porque mesmo quando falo
Minha voz é um eco que some
Na imensidão do nada
Do deserto de ser eu
Uma única, extraterrestre
Que nunca estive na ilha
E nem fui a ilha
Eu fui uma antena quebrada
Tentando transmitir milhares e milhares de mensagens
Pra milhares e milhares de pessoas
Que nunca vão receber
Mesmo do meu lado
Mesmo me tocando.