quinta-feira, 23 de março de 2023

Temperança

A pressão de
Ter que criar
Boas memórias
Me rouba o sono
Me assalta quando me deito
Como um crime
Que se comete em silêncio
Na solidão do breu
Me pego triturando
Como inventando temperos
Trançando um fio comprido
De pensamentos
Sobre meus dias infinitos
Meus dias respectivos
E sua respectiva repetitividade 
Como um salão de espelhos macabro
Onde tudo está tão distorcido
Que você não se lembra mais
Qual daquelas imagens é você
O você de verdade
Ou qual daqueles caminhos
Pode levar à saída 
Se há uma possível saída, ainda
Eu às vezes me esqueço
Que um dia eu tive que entrar
Nesse salão de espelhos
E que pra entrar eu tive que ter 
Um corpo original
Já me multipliquei
Não sei mais o que é real
Quando me deito, o peso é tanto
O cansaço é tanto
De tantos anos, de tantas
Que todas elas se debruçam sobre mim
E me suplicam que eu me debruce
Sobre mim mesma
Que eu ceda ao sono,
Que eu aceite essa derrota
Que eu finalmente descanse
Dessa exaustiva existência
Porque é demais para todas nós
Mas quando penso sobre o sol nascente
Sobre o peso dos raios quentes
Nos meus ombros tortos
Sobre a dor na minha coluna
E sobre passos forçados em direção à forca
Em direção nenhuma
Em direção a uma estação 
cujo trem não vai me levar a lugar algum
— ou a algum lugar que ninguém compreenderia
— ou ao mesmo lugar de sempre, pra sempre
Quando minha nuca enrijecida
Se deita sobre estes pensamentos
E as aves gralham seu recital das cinco ou seis
Por mais que meus olhos pesem,
Eu sei que caso eu não crie essa memória sozinha
Caso eu não passe ao menos 
uma ou duas horas vazias 
Comigo mesma
Fingindo que há esperança
Rogando paz
Respirando o nada
Caso eu não me recorde
Que existiu um tempo
Além do resto da vida
Em que eu tive a chance de ficar só,
E respirar no escuro 
Não haverá esperança
Não haverá esperança

Eu não vou sobreviver.

Nenhum comentário:

Postar um comentário