segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

O Enforcado: Mary Ann

Desperto criança e me durmo mulher
Pensamentos intrusos me afogam
Tento enforcá-los de volta
No mel azedo da noite
Antes que minha mãe me tome meus doces
Ou que as ameaças dos balões se concretizem

Eles estão todos casados,
Em suas casas, com filhos,
Com trabalhos e vidas
E eu voltando pra essa caverna
Pra lutar com minhas sombras
E provar se Platão estava certo

O melhor momento do meu bolo vermelho
É a queimadura da fôrma
E parece que minhas raízes ainda moram nessa mesma terra
Que eu nunca aprendi a me mover
Mesmo não tendo razão para ficar

Estudo as cicatrizes desse chão,
As rachaduras nas paredes,
Conto os grãos de poeira acumulados,
Mas fecho os olhos para antigas peças
Talvez eu não queira montar esse quebra-cabeça
Talvez eu só queira seguir em frente
Mas essa corrente em meus tornozelos
Não me deixa
E o peso de arrastá-la retorce toda a minha coluna

Ela me trata uma idosa
Minhas piadas se tornam agora um pesadelo
E eu não sei qual deles é mais preocupante
Sinto que pereço a cada segundo
E o que me preocupa é desejá-lo
Reflito sobre decisões póstumas
Como fosse algo cotidiano
E tento me aceitar esse estranho alienígena
Que nasci sendo

Eu brinco com fogo
De novo e de novo
Quero encontrá-la,
Traçá-la,
Pintá-la, escrever seu fim
Ninguém fez jus à menina desde o início
Ela merece no mínimo isso,
Esse fechamento
Antes que cubram meu corpo

Tento consolá-la,
Acredito que ela tem estado só há muito tempo
Numa ilha remota, muito vazia e quieta
Mas nem sei se ela se lembra
Como se comunicar

Mary Ann, eu te amo,
Eu vim te buscar,
Pra irmos pra casa.
Você ficou presa lá, eu sei.
Mas não está mais, não está.
Sei que não temos casa,
Mas você vai morar comigo agora
Eu vou te guardar no peito, no centro
Da nossa grande casa,
E de todo coelho que aparecer
Eu vou te proteger.
Você existe, eu sinto você pulsando.
E nós vamos juntas embora,
Nem que seja embora pra nunca mais.

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